O mal de Asafe ainda não está catalogado como doença, mas tem feito
vítimas aos montões. Essa é uma típica patologia que corrói a mente, vai
apagando todas as certezas e transforma a alma que um dia foi vibrante num saco
de dúvidas e revolta.
O mal de Asafe chama-se assim por causa do seu mais famoso paciente, um
tal de Asafe, ministro de música, cuja experiência está num dos cânticos do
saltério hebraico. No salmo 73, ele mesmo se queixa da doença, dá o diagnóstico
e descreve sua cura.
As vítimas do mal de Asafe são propensas à zombaria, à militância
ateísta, à agressão, ao álcool, às drogas, à devassidão, ao suicídio. Não
poucos personagens bíblicos padeceram desse grave distúrbio. São muitos os
pacientes da doença de Asafe e uma triste realidade tem de ser admitida, nem
todos alcançam a graça da cura, como aconteceu com o próprio Asafe. É preciso
tomar mais cuidado com o mal de Asafe, principalmente em tempos tão violentos
como os nossos, por razões óbvias.
Agora, quem era Asafe? Ele um judeu, da tribo de Levi, e músico por vocação
e deleite (seus filhos também foram músicos 1 Cr 25.1). Seus instrumentos
preferidos: a harpa, o alaúde e o címbalo, todos muito antigos. Nas suas
apresentações usou com mais frequência os címbalos sonoros e os címbalos
retumbantes, instrumentos de percussão compostos geralmente de dois discos de
metal, que têm no centro uma pequena cavidade para aumentar a sonoridade. Foi
designado músico e cantor pelos levitas, que tinham sob sua responsabilidade os
serviços religiosos de Jerusalém (1 Cr 16.4,5). Participou do magnífico cortejo
musical que levou a Arca do Senhor da casa de Obede-Edom para a tenda armada
pelo rei Davi (1Cr 15. 17,19. Naquele dia o rei o descobriu e fez dele ministro
de música. Porque também era músico — exímio tocador de harpa e profícuo
compositor de salmos —, Davi deu grande ênfase à música de adoração, como
expressão de louvor a Deus. Ele fazia questão de que se levantasse a voz com
alegria e reservava a si a supervisão geral de toda atividade litúrgica. Eram 4
mil levitas, que, em 24 turnos, louvavam continuamente o Senhor com
instrumentos fabricados por ordem do rei para esse fim. A maior parte era
formada de iniciantes, que aprendiam música com os mais competentes. Era uma
verdadeira escola de música sacra. Seus filhos faziam parte do corpo docente —
288 mestres ao todo. Os filhos de Asafe escreveram doze dos 150 salmos que
estão na Bíblia (os onze primeiros do livro terceiro e o salmo 50). Nesta pequena reflexão quero tratar um pouco a crise que vivenciou e da
qual Asafe fala no salmo 73.
Como disse Rui Barbosa, “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de
tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos
dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter
vergonha de ser honesto.” Penso que Asafe chegou a
desanimar da virtude. E esse desânimo o levou a uma terrível crise existencial.
Quase resvalaram os seus pés em direção ao abismo da incredulidade. (v.2) Pouco
faltou para que ele rompesse com a ideia de um Deus sábio, bom e justo, e
jogasse fora a rica tradição religiosa até então acumulada. Esteve bem perto de
uma violenta mudança de pensamento e de comportamento. Quase trocou os oráculos
de Deus pelo horóscopo do dia. Quase trocou o templo do Senhor por um terreiro
de macumba. Quase mandou tudo para o inferno, inclusive sua própria alma!
Seu problema é que ele passou a ter inveja dos pecadores. Ele dizia:
“eu também sou como eles, sujeito aos mesmos sentimentos e paixões. Por uma
questão de princípios e pelo temor do Senhor, eu abortava na fonte os desejos
pecaminosos”:
Quantas vezes
desejei vingar-me,
Quantas vezes
fui açoitado pela ira,
Quantas vezes
quis projetar-me,
Quantas vezes
fui assaltado pelo egoísmo,
Quantas vezes a
falta de recato da mulher alheia me atiçou a lascívia,
Quantas vezes
senti desânimo e preguiça.
Mas o amor a
Deus falou mais alto,
Meu coração
guardei puro,
Resisti os maus
desígnios,
Asafe, ao que parece, ofereceu forte resistência a todos esses
sentimentos e deles se privou por amor do Senhor e por causa de seu nome. De
repente se sente frustrado e se pergunta: “Será que foi à toa que eu me
esforcei para não pecar e permanecer puro?”.
Pois, enquanto ele crucificava a sua carne, os pecadores pareciam
livres, desinibidos, evoluídos, descomplexados, bem-sucedidos, felizes,
seguros, altivos e tranquilos. O que mais o desnorteou foi a falsa impressão de
que seu zelo não lhe rendia nada. Ele pensava: “Deus não me trata de modo todo
especial”. “Ele não me poupa das intempéries, do cansaço, da aflição, da doença
nem da disciplina em caso de erro, por menor que seja”. Outra coisa que
machucava o salmista era a popularidade dos pecadores e o seu aparente
anonimato.
A crise que a que foi acometido não foi brincadeira. Demorou algum
tempo e o desgastou muito. Tentou descobrir o que estava acontecendo, mas em só
refletir para compreender isso, achou mui pesada tarefa para ele. Até que um
dia Asafe entrou no santuário de Deus e compreendeu o fim último dos ímpios e pecadores
que ele estava invejando.
Dentro do templo é outra coisa. Dentro do templo sua vida ganha outra
dimensão. Ganha-se, ou recobra-se, como foi no seu caso, a perspectiva cristã
da vida, que envolve o tempo presente e a eternidade.
Renova-se a fé na existência e no caráter de Deus. Chega-se outra vez
aos seus atributos invisíveis — Ele é eterno, imensurável, incompreensível,
onipotente e também supremamente sábio, clemente, justo e verdadeiro.
Dentro do templo somos contrastados com a santidade de Deus, assim eu
me senti orgulhoso, desrespeitoso e insolente por haver duvidado da justiça de
Deus para comigo e para com os pecadores. Percebi que eu havia retirado o meu voto de confiança em Deus e por
isso estava perplexo.
Dentro do templo sua alma se abre e é derramada perante o Senhor a sua
ansiedade, a sua aflição, a sua dúvida, a sua revolta.
Então, Asafe começa a entender e ver com clareza. No templo ele se
lembra, quem sabe, do salmo de Davi: “Não te indignes por causa dos
malfeitores, nem tenhas inveja dos que praticam a iniqüidade” (Sl 37.1).
Tivesse ele memorizado melhor esse salmo, a crise teria sido mais passageira,
pois o ímpio prepotente nesta vida se expande qual cedro do Líbano (v. 35), mas
será como o viço das pastagens: será aniquilado e se desfará em fumaça (v. 20).
Nada teria acontecido a Asafe se não tivesse perdido a certeza de que “mais
vale o pouco do justo que a abundância de muitos ímpios” (v. 16). Tão perto
dele, tão frequentemente em seus lábios, por que razão deixou o salmista
escapar o ensino e o conforto deste salmo e não o aplicou a si mesmo?
Ainda dentro do templo Asafe percebeu que o desastre ocorreu quando a
crença tradicional na justiça divina começou a ser abalada em sua mente. Se há
algo que precisa permanecer intocável é exatamente a certeza de que Deus “é
recompensador dos que o buscam, mas justíssimo e terribilíssimo em seus juízos,
odeia todo o pecado e de modo algum terá por inocente o culpado”.
Quando o salmista Asafe saiu do templo estava refeito, curado,
revivificado, alegre e disposto, e, ao mesmo tempo, solícito em alimentar-se da
verdade, como ensina Davi ainda no salmo 37 (v. 3). Toda a mágoa desapareceu.
Dizia ele: “Os pecadores continuam a se afastar do Senhor; mas..., quanto a
mim, bom é estar junto a Deus: no Senhor ponho o meu refúgio, para proclamar
todos os seus feitos, em prosa e em verso, com címbalos retumbantes e com
címbalos sonoros, entre gritos de alegria e louvor — eu, que quase troquei a
música de adoração pela música profana! Graças a Deus não me tornei pedra de
escândalo para os meus 4 mil instrumentistas e cantores e toda a nação de
Israel!”
Permaneça no templo, não apenas o de alvenaria, mas em relação a estar
na presença de Deus desfrutando de sua companhia. Que essa experiência de Asafe
fale ao seu coração e lhe transmita ensinamentos para a sua caminhada com Jesus!